Discurso de um hamster
Esta gaiola está tão suja, os jornais embolados,
fedor de urina e fezes espalhadas, eu sei, mas não posso limpar. Isso é função do meu dono, mas ele não tem feito nada. Ele
já não se importa mais comigo, acho que está enjoado de mim, sei que isso acontece: primeiro sou uma novidade, depois cansam.
Humanos! O que me resta é viver como posso aqui dentro, e confesso que até já me acostumei. Já li diversas vezes as mesmas
notícias desta página policial, decorei os crimes em todos os seus detalhes. Pelo menos não são anúncios dos classificados.
Além do mais, é verão, e o chão de metal da gaiola não congela minhas patas. Passo os dias zanzando de um lado para o outro.
Não há muitas coisas para fazer em um espaço tão pequeno. De vez em quando afio meus dentes num canto da gaiola, para
que não cresçam demais e perfurem meu céu da boca, me dilacerando o cérebro. Se eu comesse mais, não precisaria fazer isso,
mas o problema é que até de me alimentar ele esqueceu. Lembro dos dias em que meus potes estavam cheios de comida, sementes
de girassol, cenouras, maçãs, todo tipo de frutas... sempre. Às vezes até nozes, e era bom. Eu sentia aquele cheiro e
corria aos potes, antes mesmo dele fechar a gaiola. Ele ria, enquanto eu enchia as bolsas de minhas bochechas com aquela fartura.
Agora nem água eu tenho mais. .... Ah, eu me lembro quando ele trouxe amigos para me ver, e brincaram comigo. Um deles
me apertou demais e eu mordi, e então me colocaram de volta na gaiola. Mesmo assim continuei a ganhar comida e água, como
sempre. Mas um dia o dono sumiu, será que foi por que eu mordi seu amigo? Mas só fiz isso por que ele me apertou e doeu, tive
que avisá-lo que não me sentia confortável nas mãos dele e essa foi a única maneira de fazê-lo me soltar. Nunca mais
senti o cheiro do meu dono... Desde então fico aqui no meio destes jornais sujos e dos potes vazios, esperando. Já pensei
em dar uma volta na minha rodinha, como sempre fazia, mas não tenho forças. Hoje decidi que não vou mais perambular pela gaiola,
nem afiar dentes, nada. Ficarei quietinho aqui no meio da gaiola, esperando. É tudo que posso fazer. Talvez ele esteja com
vergonha de voltar, pode ser. Se for isso, eu prometo que o perdôo quando ele aparecer de novo, com nozes, água e o caderno
de cultura. Admitirei até que o amo, juro. Mas ele não volta, a porta do quarto não se abre, não escuto nenhum ruído
na casa, as janelas continuam fechadas. Não há de ser nada. Um dia ele aparece. Respiro fundo, me deito e espero.
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